Na última semana de maio eu estava
no Congresso de microbiologia promovido pela sociedade americana de
microbiologia, em Boston (ASM-2014). Como sempre, esse congresso e super intenso
e eu decidi concentrar em palestras sobre diversidade microbiana. Um dos títulos de
palestra que mais me interessou foi "Illuminating the dark matter of
microbiology". Realmente a palestra foi maravilhosa. Tratava-se de uma
estratégia para sequenciamento de genomas de bactérias com poucos ou nenhum
representante em cultura (Rinke et al, 2013).
Minha primeira pergunta foi, por que
“matéria escura”? Isso não é um termo usado em astronomia? Sim, a utilização desse
termo na microbiologia era uma metáfora para falar da estimativa de que 99% dos
microrganismos ainda são desconhecidos. Quem são esses 99%? A gente conhece
apenas fragmentos de DNA pertencentes à esses microrganismos, mas os
microbiologistas ainda não sabem como cultivá-los no laboratório. Eles são
considerados recalcitrantes ao cultivo, ou seja, eles são difíceis de se obter
em placas de Petri. A grande pergunta é: por que? O que eles tem de diferente? A
gente aprende em microbiologia que todos os organismos, inclusive as bactérias,
precisam de uma fonte de carbono, nitrogênio, enxofre e fósforo
(macronutrientes). Alguns precisam de mais coisas como vitaminas e minerais,
mas esse requerimento varia de organismo para organismo. Os 99% desconhecidos
precisam de que?
Em busca dessa resposta os
pesquisadores coletaram nove amostras diferentes, desde lodo de esgoto até de águas
termais. Colocaram a mistura de microrganismos de cada amostra em um citômetro de fluxo, que separou as células microbianas, uma por uma. Depois selecionaram
algumas para sequenciar o genoma, eles escolheram as que ainda eram
desconhecidas. Aí vem o truque, sequenciaram o genoma vindo de uma única célula microbiana, o que
chamamos de single cell genomics.
Os pesquisadores conseguiram obter
genomas de células procarióticas sem precisar de cultivo! Qual a importância
disso? Os microbiologistas conheceram o genoma delas antes de vê-las de verdade
em cultura. Foram identificados e nomeados novos filos bacterianos usando essas
sequencias. Ainda há muita informação para analisar sobre esses organismos
ainda desconhecidos. Por outro lado, eles realmente acessaram a matéria escura
microbiana, só usando o DNA dos microrganismos.
E aquela pergunta sobre o motivo delas
serem tão difíceis de cultivar, elas fazem coisas diferentes das bactérias que
conhecemos? Na verdade, a informação dos genomas mostrou que muitas são
heterotróficas e obtém energia de processos como respiração, nada de novo... Os
autores são muito cuidadosos em dizer que a informação genômica é só um começo,
que mais estudos precisam ser feitos para responder definitivamente essa
pergunta.
Para fixar:
1. Para
cultivar microrganismos utilizamos meios de cultura. Adicionamos sempre
macronutrientes. Quais são os macronutrientes que podemos encontrar em extrato
de levedura, um componente comum dos meios complexos.
2. Só porque
não tem membrana nuclear, bactéria não tem genoma? E DNA ou cromossomo, tem?
você sabe a diferença entre esses termos?
Para pensar:
1. Se você
quisesse cultivar um microrganismo da matéria escura, como você faria?
Lembre-se, eles são desconhecidos.
2. O que você
acha que podemos descobrir nos microrganismos que fazem parte da matéria escura
microbiana? Você acha importante investir em conhecê-los? Será que os
microbiologistas só precisam continuar insistindo no cultivo delas? Será que
realmente precisamos de muita inovação para cultivar esses microrganismos?
Referência:
Christian Rinke, Patrick Schwientek, Alexander Sczyrba, Natalia N. Ivanova, Iain J. Anderson, Jan-Fang Cheng, Aaron Darling, Stephanie Malfatti, Brandon K. Swan, Esther A. Gies, Jeremy A. Dodsworth, Brian P. Hedlund, George Tsiamis, Stefan M. Sievert, Wen-Tso Liu, Jonathan A. Eisen, Steven J. Hallam, Nikos C. Kyrpides, Ramunas Stepanauskas, Edward M. Rubin, Philip Hugenholtz, and Tanja Woyke. (2013) Insights into the phylogeny and coding potential of microbial dark matter. Nature 499: 431-437.
Um texto mais técnico, para entender é preciso de algum conhecimento sobre metagenoma.
Christian Rinke, Patrick Schwientek, Alexander Sczyrba, Natalia N. Ivanova, Iain J. Anderson, Jan-Fang Cheng, Aaron Darling, Stephanie Malfatti, Brandon K. Swan, Esther A. Gies, Jeremy A. Dodsworth, Brian P. Hedlund, George Tsiamis, Stefan M. Sievert, Wen-Tso Liu, Jonathan A. Eisen, Steven J. Hallam, Nikos C. Kyrpides, Ramunas Stepanauskas, Edward M. Rubin, Philip Hugenholtz, and Tanja Woyke. (2013) Insights into the phylogeny and coding potential of microbial dark matter. Nature 499: 431-437.
Lendo o artigo, eu
descobri que o termo foi usado em 2007, uma apresentação da estratégia geral de
usar single cell genomics para
acessar microrganismos desconhecidos da boca, especialmente do grupo TM7 que
até então não haviam sido cultivados (Marcy et al 2007). A palestra que eu
assisti foi da Dra Tanja Woyke e ela mostrou as principais figuras do seu
artigo da Nature (Rinke et al, 2013). Esse trabalho é parte da grande
iniciativa do Genomic Encyclopedia of Bacteria and Archaea (GEBA) que
pretende sequenciar genomas de milhares de bactérias para aumentar o conhecimento
filogenético.
Em resumo, eles
amostraram 9 locais, separaram as células procarióticas com um citômetro de
fluxo, identificaram cada uma com auxílio do gene do RNAr 16S, escolheram
aquelas pertencentes a filos ainda desconhecidos para o sequenciamento do
genoma. Foram 201 genomas, muitos incompletos. Dentre os resultados principais
estão a melhor resolução da árvore filogenética de procariotos sendo que eles
deram o nome para vários filos. Outra contribuição foi a correção de afiliação
taxonômica de fragmentos gerados por metagenoma, afirmaram que pelo menos 50%
dos metagenomas analisados foram corrigidos pelo novo conhecimento
gerado. Existem outras informações no texto, como a utilização de códon de
terminação UGA para incorporação da glicina em alguns desses grupos, eles
argumentam que isso pode ser comum em algumas linhagens.
Apesar de esse ser um dos artigos mais legais que
eu li nos últimos tempos, eu fui buscar a explicação sobre a recalcitrância
desses microrganismos ao cultivo. Fiquei frustrada, pois a maioria parece ser
heterotrófica, e usam cadeia transportadora de elétrons para gerar energia. Ou
seja, essa pergunta ainda está sem resposta definitiva, mas admiro o esforço de
adicionar conhecimento científico de forma tão planejada, como parte de um objetivo maior que é conhecer os tais 99% de microrganismos ainda desconhecidos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário