Todo semestre eu peço aos meus
alunos de microbiologia que procurem um artigo de jornal ou revista que fale
sobre microrganismos. Eu tenho como objetivo mostrar para eles que
microrganismos são “celebridades”. Estão sempre na mídia, muitas vezes na capa.
Ao final dessa atividade, eu gosto de dizer como microbiologia faz parte do
nosso dia a dia. Bom, de vez em quando, um ex-aluno me manda uma notícia para
usar em sala de aula. A notícia que vou comentar a seguir foi enviada por uma
ex-aluna.
Eu fiquei
um pouco surpresa com o título: Cientistas criam bactéria que come CO2 do ar. Como assim? Na natureza
existem milhares de microrganismos que usam CO2. Eles são autototróficos.
Se nós vamos explorar um
universo de microrganismos ainda desconhecidos precisamos ter certeza que
entendemos bem os que já são conhecidos. Assim, eu achei que essa era
excelente oportunidade para explicar quimioautotrofia (ou quimiolitoautotrofia*).
O artigo
fala sobre uma arquéia (Archaea)
chamada Pyrococcus furiosus que é encontrada em sedimentos
próximos a vulcões, com temperaturas próximas à fervura, ou 100°C. Como sua
temperatura ótima de crescimento é em torno de 100°C, esse microrganismo é
chamado de hipertermófilo (termófilo = que gosta de calor). Na natureza, esse organismo usa moléculas orgânicas como
fonte de carbono. Assim, é um heterotrófico. Outros organismos utilizam carbono
inorgânico como fonte de carbono, como o CO2 – dióxido de carbono.
Nesse caso, eles são chamados de autotróficos.
A
autotrofia já é conhecida, as plantas são fotoautotróficas. Isso quer dizer que
usam energia solar (foto) e fonte de carbono inorgânica (CO2).
Existem várias bactérias fotoautotróficas, inclusive algumas fazem uma
fotossíntese diferente das plantas (fotossíntese anoxigênica). Por outro lado,
existem os quimioautotróficos, esses são os organismos que usam energia química
(não usam a luz solar) e usam o carbono inorgânico, pode ser o CO2. Quimioautotrofia já é conhecida desde o final do século XIX com os
trabalhos de um pesquisador russo chamado Sergei Winogradsky.
É muito
simples: fonte de energia: foto ou quimio + fonte de carbono: orgânica ou
inorgânica. A combinação da fonte de energia e fonte de carbono dá: o
quimioautotrófico. Faça as
combinações possíveis e você vai classificar todos os organismos do nosso
planeta por essas duas características metabólicas! Supersimples.
Voltando ao título do
artigo… pensei bem, e vi que não estava errado, mas enganava o leitor. O que os
cientistas fizeram foi muito mais legal do que "criar um microrganismo que usa CO2". Sim, eles pegaram os genes de uma via metabólica de outra arquéia que é
naturalmente “autotrófica” e inseriram no genoma de P. furiosus. Essa via metabólica não usa luz como fonte de energia
= “quimio”. Com que intuito? Fazer com que P.
furiosus produza um composto de interesse biotecnológico de forma mais
barata. No artigo eles produziram ácido 3-hidroxipropiônico, mas o plano deles
é produzir biocombustíveis (Keller et al., 2013).
O que me
intrigou no artigo da revista foi uma preocupação com o decréscimo dos níveis
de CO2 do planeta, caso essa bactéria escapasse para a natureza.
Achei esquisito, pois o uso de CO2 por microrganismos faz parte do
ciclo biogeoquímico do carbono, não são apenas as plantas que fazem isso, espécies de bactérias e arquéias também fixam carbono.
Procurei na internet para ver
se alguém tinha feito um cálculo imaginando a pior situação possível, um
vazamento de um reator contendo litros e litros da cultura desse organismo. Eu
não encontrei, e você? Por outro lado, encontrei essa mesma informação em uma
reportagem em inglês. Parece um pouco de marketing, posso estar enganada.
De qualquer forma é um organismo geneticamente modificado (OGM) e deve ser
tratado com todo o cuidado que merece. Todo cientista deve conhecer a legislação para
se manipular OGMs, mesmo sendo um microrganismo (Lei da Biossegurança).
Conclusão, os cientistas criaram uma arquéia que é
heterotrófica a 100°C e autotrófica a 70°C. Para mim, isso é mais interessante que
"criam uma bactéria que come CO2". Para terminar, Pyrococcus furiosus não é bactéria, é
arquéia.
Para fixar
1. Um organismo que usa energia química
como fonte de energia e CO2 como fonte de carbono são chamados de
quimioautotróficos. Procure na internet um microrganismo com essas
características, diga qual a importância desse microrganismo.
2. Quer dizer que existe fotossíntese e
quimiossíntese? O que você acha? Procure essa informação nos seus livros de
microbiologia.
3. Pyrococcus
furiosus é uma arqueia hipertermofílica. Esse organismo é um eucarioto ou
procarioto? Explique uma semelhança e uma diferença entre arquéias e bactérias.
Para pensar
1. Agora vamos pensar numa situação no
futuro, e se o CO2 produzido pela queima de combustíveis fósseis
pudesse ser transformado novamente em biocombustível por um microrganismo
autotrófico?
2. Será que a gente não pode usar um
microrganismo já naturalmente quimioautotrófio para fazer a mesma coisa?
3. Você acha que existem vantagens em usar
microrganismos termófilos em processos industriais?
Matthew W. Keller, Gerrit J. Schut, Gina L. Lipscomb, Angeli L. Menon,
Ifeyinwa J. Iwuchukwu, Therese T. Leuko, Michael P. Thorgersen, William J.
Nixon, Aaron S. Hawkins, Robert M. Kelly, and Michael W. W. Adams. (2013) Exploiting
microbial hyperthermophilicity to produce an industrial chemical, using
hydrogen and carbon dioxide. PNAS 110: 5840–5845.
* Margulis, L. and Schwartz, K.V. Cinco reinos: um guia ilustrado dos filos da vida na Terra. 3a ed. Guanabara Koogan, RJ.
* Margulis, L. and Schwartz, K.V. Cinco reinos: um guia ilustrado dos filos da vida na Terra. 3a ed. Guanabara Koogan, RJ.
Nenhum comentário:
Postar um comentário