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sábado, 30 de agosto de 2014

Heterotrófico ou autotrófico?

     Todo semestre eu peço aos meus alunos de microbiologia que procurem um artigo de jornal ou revista que fale sobre microrganismos. Eu tenho como objetivo mostrar para eles que microrganismos são “celebridades”. Estão sempre na mídia, muitas vezes na capa. Ao final dessa atividade, eu gosto de dizer como microbiologia faz parte do nosso dia a dia. Bom, de vez em quando, um ex-aluno me manda uma notícia para usar em sala de aula. A notícia que vou comentar a seguir foi enviada por uma ex-aluna.
     Eu fiquei um pouco surpresa com o título: Cientistas criam bactéria que come CO2 do ar. Como assim? Na natureza existem milhares de microrganismos que usam CO2. Eles são autototróficos. Se nós vamos explorar um universo de microrganismos ainda desconhecidos precisamos ter certeza que entendemos bem os que já são conhecidos. Assim, eu achei que essa era excelente oportunidade para explicar quimioautotrofia (ou quimiolitoautotrofia*).

     O artigo fala sobre uma arquéia (Archaea) chamada Pyrococcus furiosus que é encontrada em sedimentos próximos a vulcões, com temperaturas próximas à fervura, ou 100°C. Como sua temperatura ótima de crescimento é em torno de 100°C, esse microrganismo é chamado de hipertermófilo (termófilo = que gosta de calor). Na natureza, esse organismo usa moléculas orgânicas como fonte de carbono. Assim, é um heterotrófico. Outros organismos utilizam carbono inorgânico como fonte de carbono, como o CO2 – dióxido de carbono. Nesse caso, eles são chamados de autotróficos.
A autotrofia já é conhecida, as plantas são fotoautotróficas. Isso quer dizer que usam energia solar (foto) e fonte de carbono inorgânica (CO2). Existem várias bactérias fotoautotróficas, inclusive algumas fazem uma fotossíntese diferente das plantas (fotossíntese anoxigênica). Por outro lado, existem os quimioautotróficos, esses são os organismos que usam energia química (não usam a luz solar)  e usam o carbono inorgânico, pode ser o CO2. Quimioautotrofia já é conhecida desde o final do século XIX com os trabalhos de um pesquisador russo chamado Sergei Winogradsky.

     É muito simples: fonte de energia: foto ou quimio + fonte de carbono: orgânica ou inorgânica. A combinação da fonte de energia e fonte de carbono dá: o quimioautotrófico. Faça as combinações possíveis e você vai classificar todos os organismos do nosso planeta por essas duas características metabólicas! Supersimples.

Fontes de carbono e energia combinadas descrevem a diversidade metabólica dos organismos do nosso planeta. http://cronicasmicrobianas.blogspot.com.br/2014/08/heterotrofico-ou-autotrofico.html
  
  Voltando ao título do artigo… pensei bem, e vi que não estava errado, mas enganava o leitor. O que os cientistas fizeram foi muito mais legal do que "criar um microrganismo que usa CO2". Sim, eles pegaram os genes de uma via metabólica de outra arquéia que é naturalmente “autotrófica” e inseriram no genoma de P. furiosus. Essa via metabólica não usa luz como fonte de energia = “quimio”. Com que intuito? Fazer com que P. furiosus produza um composto de interesse biotecnológico de forma mais barata. No artigo eles produziram ácido 3-hidroxipropiônico, mas o plano deles é produzir biocombustíveis (Keller et al., 2013). 
     O que me intrigou no artigo da revista foi uma preocupação com o decréscimo dos níveis de CO2 do planeta, caso essa bactéria escapasse para a natureza. Achei esquisito, pois o uso de CO2 por microrganismos faz parte do ciclo biogeoquímico do carbono, não são apenas as plantas que fazem isso, espécies de bactérias e arquéias também fixam carbono.
      Procurei na internet para ver se alguém tinha feito um cálculo imaginando a pior situação possível, um vazamento de um reator contendo litros e litros da cultura desse organismo. Eu não encontrei, e você? Por outro lado, encontrei essa mesma informação em uma reportagem em inglês. Parece um pouco de marketing, posso estar enganada. De qualquer forma é um organismo geneticamente modificado (OGM) e deve ser tratado com todo o cuidado que merece. Todo cientista deve conhecer a legislação para se manipular OGMs, mesmo sendo um microrganismo (Lei da Biossegurança). 
       Conclusão, os cientistas criaram uma arquéia que é heterotrófica a 100°C e autotrófica a 70°C. Para mim, isso é mais interessante que "criam uma bactéria que come CO2". Para terminar, Pyrococcus furiosus não é bactéria, é arquéia. 

Para fixar
1. Um organismo que usa energia química como fonte de energia e CO2 como fonte de carbono são chamados de quimioautotróficos. Procure na internet um microrganismo com essas características, diga qual a importância desse microrganismo.   
2. Quer dizer que existe fotossíntese e quimiossíntese? O que você acha? Procure essa informação nos seus livros de microbiologia.
3. Pyrococcus furiosus é uma arqueia hipertermofílica. Esse organismo é um eucarioto ou procarioto? Explique uma semelhança e uma diferença entre arquéias e bactérias.

Para pensar
1. Agora vamos pensar numa situação no futuro, e se o CO2 produzido pela queima de combustíveis fósseis pudesse ser transformado novamente em biocombustível por um microrganismo autotrófico?
2. Será que a gente não pode usar um microrganismo já naturalmente quimioautotrófio para fazer a mesma coisa?
3. Você acha que existem vantagens em usar microrganismos termófilos em processos industriais?


Matthew W. Keller, Gerrit J. Schut, Gina L. Lipscomb, Angeli L. Menon, Ifeyinwa J. Iwuchukwu, Therese T. Leuko, Michael P. Thorgersen, William J. Nixon, Aaron S. Hawkins, Robert M. Kelly, and Michael W. W. Adams. (2013) Exploiting microbial hyperthermophilicity to produce an industrial chemical, using hydrogen and carbon dioxide. PNAS 110: 5840–5845.

* Margulis, L. and Schwartz, K.V. Cinco reinos: um guia ilustrado dos filos da vida na Terra. 3a ed. Guanabara Koogan, RJ.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

The microbial dark matter - A desconhecida diversidade microbiana

            Na última semana de maio eu estava no Congresso de microbiologia promovido pela sociedade americana de microbiologia, em Boston (ASM-2014). Como sempre, esse congresso e super intenso e eu decidi concentrar em palestras sobre diversidade microbiana. Um dos títulos de palestra que mais me interessou foi "Illuminating the dark matter of microbiology". Realmente a palestra foi maravilhosa. Tratava-se de uma estratégia para sequenciamento de genomas de bactérias com poucos ou nenhum representante em cultura (Rinke et al, 2013).
            Minha primeira pergunta foi, por que “matéria escura”? Isso não é um termo usado em astronomia? Sim, a utilização desse termo na microbiologia era uma metáfora para falar da estimativa de que 99% dos microrganismos ainda são desconhecidos. Quem são esses 99%? A gente conhece apenas fragmentos de DNA pertencentes à esses microrganismos, mas os microbiologistas ainda não sabem como cultivá-los no laboratório. Eles são considerados recalcitrantes ao cultivo, ou seja, eles são difíceis de se obter em placas de Petri. A grande pergunta é: por que? O que eles tem de diferente? A gente aprende em microbiologia que todos os organismos, inclusive as bactérias, precisam de uma fonte de carbono, nitrogênio, enxofre e fósforo (macronutrientes). Alguns precisam de mais coisas como vitaminas e minerais, mas esse requerimento varia de organismo para organismo. Os 99% desconhecidos precisam de que?

            Em busca dessa resposta os pesquisadores coletaram nove amostras diferentes, desde lodo de esgoto até de águas termais. Colocaram a mistura de microrganismos de cada amostra em um citômetro de fluxo, que separou as células microbianas, uma por uma. Depois selecionaram algumas para sequenciar o genoma, eles escolheram as que ainda eram desconhecidas. Aí vem o truque, sequenciaram o genoma vindo  de uma única célula microbiana, o que chamamos de single cell genomics.
            Os pesquisadores conseguiram obter genomas de células procarióticas sem precisar de cultivo! Qual a importância disso? Os microbiologistas conheceram o genoma delas antes de vê-las de verdade em cultura. Foram identificados e nomeados novos filos bacterianos usando essas sequencias. Ainda há muita informação para analisar sobre esses organismos ainda desconhecidos. Por outro lado, eles realmente acessaram a matéria escura microbiana, só usando o DNA dos microrganismos.
            E aquela pergunta sobre o motivo delas serem tão difíceis de cultivar, elas fazem coisas diferentes das bactérias que conhecemos? Na verdade, a informação dos genomas mostrou que muitas são heterotróficas e obtém energia de processos como respiração, nada de novo... Os autores são muito cuidadosos em dizer que a informação genômica é só um começo, que mais estudos precisam ser feitos para responder definitivamente essa pergunta.

Para fixar:
1. Para cultivar microrganismos utilizamos meios de cultura. Adicionamos sempre macronutrientes. Quais são os macronutrientes que podemos encontrar em extrato de levedura, um componente comum dos meios complexos.
2. Só porque não tem membrana nuclear, bactéria não tem genoma? E DNA ou cromossomo, tem? você sabe a diferença entre esses termos?

Para pensar:
1. Se você quisesse cultivar um microrganismo da matéria escura, como você faria? Lembre-se, eles são desconhecidos.

2. O que você acha que podemos descobrir nos microrganismos que fazem parte da matéria escura microbiana? Você acha importante investir em conhecê-los? Será que os microbiologistas só precisam continuar insistindo no cultivo delas? Será que realmente precisamos de muita inovação para cultivar esses microrganismos?

Referência:
Christian Rinke, Patrick Schwientek, Alexander Sczyrba, Natalia N. Ivanova, Iain J. Anderson, Jan-Fang Cheng, Aaron Darling, Stephanie Malfatti, Brandon K. Swan, Esther A. Gies, Jeremy A. Dodsworth, Brian P. Hedlund, George Tsiamis, Stefan M. Sievert, Wen-Tso Liu, Jonathan A. Eisen, Steven J. Hallam, Nikos C. Kyrpides, Ramunas Stepanauskas, Edward M. Rubin, Philip Hugenholtz, and Tanja Woyke. (2013) Insights into the phylogeny and coding potential of microbial dark matter. Nature 499: 431-437.


Apresentação do Blog


  Sempre conto essa história para meus colegas, sobre o dia em que meu cérebro foi chacoalhado e eu vi microbiologia de um outro jeito. Aconteceu no meu primeiro ano de doutorado, na aula de Environmental Evolution ministrada pela cientista que eu tinha a maior admiração: Dr. Lynn Margulis. Ela tinha um microscópio associado a uma tela de TV, a aula era sobre comunidades microbianas e cianobactérias. Ela pegou uma gota de água de dentro de um pequeno recipiente formado pelas folhas de uma bromeliaceae (a familia do abacaxi), colocou numa lâmina e pronto,  vimos o que tinha naquela água. Minha reação: credo, está tudo contaminado!


     O que havia acabado de observar era uma comunidade microbiana, cianobactérias eram abundantes e fáceis de ver ao microscópio, mas dava para diferenciar uma infinidade de células de todos os tamanhos e formas naquela lâmina, coisas se movendo para todo lado. Em todo meu treinamento anterior em microbiologia eu me orgulhava de ter uma "boa mão" para obter culturas puras. Aquelas que todo aluno de microbiologia conhece, contendo só uma espécie de bactéria, sem "contaminação" com outras espécies de microrganismos indesejados. Acredito que minha obsessão pela cultura pura tenha suas raízes na microbiologia de Pasteur, Koch e demais contemporâneos da teoria do germe. Conceito extremamente importante em microbiologia clinica e geral. Foi assim que eu fui treinada e acredito que quase todos os microbiologistas brasileiros da minha geração também o foram. Olhar pela primeira vez uma comunidade microbiana e entender que essa mistura de microrganismos é o normal na natureza foi transformador.

     Com o tempo eu comecei a me interessar sobre o que mais havia nesse mundo, o que os microrganismos estão fazendo pelo planeta afora. Hoje meu interesse é a diversidade microbiana, especialmente o que as pessoas tem chamado de matéria escura microbiana (microbial dark matter). Eu não inventei esse termo. No meu entender, a tal matéria escura (dark matter) em astrofísica significa a região no universo que não é observado, em que não se sabe bem o que tem lá, estou certa? Esse termo é uma analogia com a diversidade microbiana ainda desconhecida, os tais 99% das espécies bacterianas que os cientistas acreditam que ainda não conhecemos, não sabemos como cultivar (Marcy et al., 2006).

     Esse é um espaço para eu colocar textos para os meus alunos, coisas que uso em sala de aula e outras que aconteceram em sala; mas é também para todos que quiserem audaciosamente ir aonde nenhum microbiologista jamais foi

  
Microscopia de contraste de fase de uma espécie de Paenibacillus.
Essa foto é da minha aluna de doutorado,Rosiane Costa (UCB).
     Achamos que foi uma tentativa de contato da bactéria. 
                         Nós te amamos também, bactéria ..

                                 


Referência para o Microbial Dark Matter: